domingo, 31 de maio de 2009

Capítulo V - Investigadores de polícia, carteiros e cobradores de ônibus.

Nas diligências, era comum encontrar investigadores de polícia, mesmo fora das delegacias. Em uma entrevista que li recentemente na internet, uma oficial de justiça teria dito que a relação dos oficiais de justiça com a polícia era ruim. Digo, sinceramente, que essa não foi minha experiência. Pelo contrário, investigadores e agentes da polícia civil sempre davam boas conversas e eu os achava muito divertidos. Também não tive qualquer problema com policiais militares, mas em geral eles eram sérios e de pouca conversa.


Os policiais civis trabalhavam em dupla nas diligências com viatura. O agente policial dirigia o carro e o investigador ia no banco do carona.


Uma vez eu estava caminhando em uma avenida situada próxima à divisa com Diadema quando, subitamente, uma viatura da polícia civil parou na minha frente, o investigador desceu e disse bruscamente:


- É você que nós queremos!


Eu entendi na hora: eu estava com o guia de ruas na mão. E perguntei, já rindo da brincadeira:


- Vamos lá, que rua vocês querem encontrar?


Nisso o agente policial já tinha descido do carro e estava dando gargalhadas com a tentativa de susto que não deu certo e ficou mais engraçada ainda.


Eles me disseram o nome da rua e eu localizei no guia. Aproveitei e pedi uma carona para eles, que era para um local próximo. Só que eu disse que queria ficar uma rua antes da rua que eu tinha de ir, para não chegar no local em uma viatura da polícia.


Explico: chegar em uma viatura da polícia poderia assustar as pessoas e se eu estivesse buscando um réu, possivelmente haveria uma reação armada. No caso era apenas uma intimação de testemunha, mas mesmo assim eu não queria arriscar.


Os dois estavam conversando sobre um empréstimo e o investigador ficou dizendo para o agente: “se você não me pagar, ó...” e balançava o revólver...


Eu não consegui prender o riso e então eles me perguntaram se eu não gostaria de ir fazer a diligência deles com eles. Eu gentilmente disse que não, alegando que estava com muito serviço.


Não sei se ainda existe, mas naquela época tinham policiais civis que permitiam pessoas que não eram policiais acompanhassem ou realizassem as diligências. A gíria utilizada para designar essas pessoas era “ganso”. Não faço a menor idéia da razão desse nome, mas imagino que nos momentos de suposto perigo, o ganso deveria gritar de medo ou de excitação...


Havia dois tipos de “ganso”: o que pagava para ser “ganso” e que recebia para ser “ganso”.
Eu nunca vi um “ganso” em ação, mas conheci um cara, um colega de faculdade, que era “ganso” (também chamado de gansopol, porque a abreviatura de investigador de polícia era investpol).


As histórias que eu ouvia eram mais ou menos assim: o ganso que pagava para ser ganso era normalmente um comerciante da Zona Leste de São Paulo que queria brincar de ser policial, indo em diligências para mandar os suspeitos colocarem a mão da parede, pedir documentos, gritar “polícia, todo mundo parado!”, essas coisas, tal como a gente vê nos filmes.


Mas havia o gansopol que recebia para fazer algum tipo de trabalho para os investigadores. Quem pagava? Ora, os policiais não iriam tirar dinheiro do bolso para pagar o ganso. Portanto, ainda de acordo com as histórias que eu ouvi - que podem ser mentirosas -, o ganso ficava com uma parte da res furtiva que poderia ser apreendida nas diligências (res furtiva significa coisa furtada ou roubada).


Claro que todas essas histórias de gansos eram divertidíssimas.


Um investigador uma vez me disse que o ideal seria uma equipe ter três tiras, pois aí “um dá cobertura enquanto dois chegam junto”. Essa frase foi dita por um investigador que conheci em uma delegacia. Ele era muito gordo, usava um bigode aparado em cima (para ficar comprido e estreito), deveria ter uns quarenta anos. Eu achei essa história da equipe ideal muito engraçada, mas eu a contei para outras pessoas que não viram nada de mais.


Esse cara contou também como funcionava o esquema de casas de massagens, que tinham uma placa escrita “relax for men” na porta. Teoricamente, casa de prostituição é ilegal. A prostituição, em si, não é crime no Brasil, mas tirar proveito da prostituição alheia é crime. Pois bem. Eu perguntei para esse investigador muito gordo como é que a polícia deixava essas casas funcionarem. Ele me respondeu:


- Olha, raramente a gente recebe ordem para dar batida nesses locais. Quando mandam, a gente vai, lavra o flagrante, prende o gerente etc


E ele completou dizendo que fora dessas situações, era possível ir a essas casas e pegar uma puta sem pagar nada. Mas ele fez questão de dizer:


- Mas a gente sempre deixa uma gorjeta para elas. Aí fica tudo certo.


Confesso que acreditei nessa história, porque não duvido de como o mundo pode ser cruel. Eu fiquei imaginando uma puta magrinha tendo que dar para o investigador gordão...


Outro profissional que eu sempre encontrava em diligências eram os carteiros. Quase todos bem humorados, conheciam todas as ruas do bairro de cabeça (não precisavam nunca consultar o guia). Quando eu estava perdido, se surgisse um carteiro o problema estaria resolvido, pois eles sempre sabiam como chegar no local e sempre ajudavam.


Uma vez aconteceu isso e depois da diligência feita eu parei em um boteco. O carteiro estava lá tomando umas brejas. Já eram umas cinco ou seis da tarde e eu estava cansado de andar. Sentei à mesa com ele e começamos a conversar. Papo vai, papo vem, ele fez uma revelação:


- Eu tenho uma filha de nove anos fora do casamento. Só que a minha mulher não sabe...


Perguntei há quanto tempo eles estavam casados. Ele me respondeu que moravam junto há uns cinco ou seis anos. Então eu disse:


- Ué, por que você não contou para ela?


Aí ele me explicou que além do tempo em que moravam junto, teve um tempo de namoro, que ele ficou pegando as duas mulheres na mesma época. Contou o rolo todo, mas eu não prestei atenção nos detalhes, pois para mim o mais curioso era o fato dele contar a existência da filha para mim, que ele tinha concedido há menos de uma hora, e não contar para a mulher que divide a vida com ele.


No dia eu não entendi que ele queria apenas dividir a culpa que sentia por causa disso. Se eu dissesse que não tinha problema algum o cara ter uma filha fora do casamento sem a mulher saber, estaria tudo bem. Eu não cheguei a dizer isso, mas também não dei lição de moral no cara.


Quem eu conversava diariamente eram os cobradores de ônibus. A maioria deles não gostava do oficial de justiça. É que continua...

terça-feira, 26 de maio de 2009

Uma necessária explicação aos leitores deste Blog

Quando algumas pessoas (inclusive do meio editorial) me sugeriram escrever sobre as minhas aventuras como oficial de justiça de uma vara criminal, a idéia era "romancear" um pouco os acontecimentos, "aumentar" os fatos, e criar um livro de literatura interessante para o leitor. Seria um livro escrito com os vários elementos de marketing editorial (escrever o que o leitor quer ler) para ser um sucesso de vendas.

Mas essa idéia desapareceu por completo logo no início do trabalho: eu comecei a escrever e vi que não precisava "romancear" nada, muito pelo contrário. Talvez eu tenha é que omitir algumas coisas! Situações nada abonadoras para pessoas famosas, por exemplo, é algo que ainda não sei como irei abordar (mesmo que eu não coloque o nome da pessoa, será fácil para o leitor mais esperto identificar de quem estou falando).

Também é delicado descrever como funcionava a corrupção, que envolvia pessoas de várias categorias profissionais. Isso será feito, embora com o cuidado de se evitar generalizações, tão a gosto da pauta atual da mídia.

Por que seria necessário "romancear" a atuação de um advogado de bandido rico plantando uma nulidade no processo? Ou uma delegacia de polícia com quarenta presos cumprindo pena em uma cela feita para abrigar provisoriamente apenas dois? Não é preciso "aumentar" nada, basta descrever os fatos exatamente do modo em que eles ocorreram.

Como não tenho a criatividade de Gabriel Garcia Márquez, nem o humor inteligente de Vargas Llosa, muito menos vou conseguir descrever prostitutas e cortiços com o lirismo de Jorge Amado, o jeito é fazer um livro com um discurso direto, tratando a realidade que vi sem usar metáforas ou eufemismos.

Mães e pais de criminosos (continuação)

...continuação do Capítulo IV.
Em um caso não tive pena da mãe. Foi em um bairro muito pobre. Em uma casa imunda e fedorenta, perguntei se o réu estava. A mãe dele me disse que ele morava lá, mas não estava no momento. Eu então disse que voltaria mais tarde, no mesmo dia. Ela então falou de forma ríspida:
- Diga-me a hora exata em que você voltará. Ou você pensa que meu filho ficará o dia inteiro te esperando?
Eu poderia estar enganado, mas esse seria um caso em que a má criação teria produzido um bandido. Ao contrário de mães tristes e envergonhadas que normalmente eu encontrava, dessa vez eu estava diante de uma mãe grosseira e arrogante. Como eu estava já acostumado com essas situações, respondi calmamente:
- Senhora, eu não sei a hora exata que voltarei. Eu tenho muitos mandados para cumprir aqui no bairro. Eu posso certificar que não encontrei seu filho neste endereço e dar por encerrada a questão.
O fato é que voltei mais tarde no local e o rapaz estava me esperando. Ele recebeu a citação educadamente, disse que iria comparecer à audiência caso contrário daria “probrema”.
Encontrar mães das vítimas era bem menos comum. Era, evidentemente, uma situação igualmente triste. No meu caso havia uma vantagem: não era caso de morte, porque crimes dolosos contra a vida são de competência do Júri e eu trabalhava em uma vara criminal comum. Eu poderia ter casos envolvendo latrocínio (roubo seguido de morte) ou um homicídio culposo (sem intenção de matar). Mas, felizmente, não encontrei nenhuma mãe de vítima desses crimes.
Os pais tinham comportamento semelhante ao das mães. Mas ao menos em um caso me lembro de um pai dizendo que o filho “não prestava”. E ainda se referiu à naturalidade do filho, que era do mesmo Estado do Presidente da República da época, para dizer que os dois “não prestavam”.
Um caso interessante que envolveu um pai ocorreu no Jardim Paulista. O edifício em que eles moravam era de alto nível. Eu tinha de cumprir um mandado de prisão.
É isto mesmo: é expedido mandado de prisão para o Oficial de Justiça cumprir. Teoricamente, o Oficial de Justiça deveria, em caso de resistência à prisão, solicitar auxílio policial para cumprir o mandado. Só que ninguém fazia isso, simplesmente porque nesses casos o réu já tinha sumido há muito tempo. Por isso, entre os oficiais de justiça, era corrente o pensamento de que mandado de prisão era o mais fácil de todos: bastava ir até o local ver se o endereço existia de verdade e certificar que o réu não mais residia ou trabalhava mais no local.
Só que às vezes a coisa poderia ser diferente. Eu cheguei até o edifício e fui atendido pelo porteiro do prédio bacana. Como sempre fazia, perguntei pela pessoa, sem dar mais informações. Ele me olhou de um jeito desconfiado, perguntou quem eu era. Eu disse, simplesmente, que queria falar com o Sr. Fulano. O porteiro hesitou um pouco, interfonou para o apartamento do réu. O pai desceu e veio falar comigo de um jeito nada delicado:
- Posso saber do que se trata?
Eu me identifiquei como Oficial de Justiça e disse que tinha uma comunicação para entregar. Perguntei se o Sr. Fulano estava no apartamento, pois as intimações devem ser entregues pessoalmente, nem mesmo os pais poderiam receber.
O pai do réu insistiu que ele não estava no apartamento, bem como não sabia o paradeiro do filho. Eu desconfiei que ele estava mentido: ou o réu estava no apartamento ou o pai sabia onde ele estava. Afinal de contas, ou o pai estaria protegendo o filho ou não. Na última hipótese, ele iria abrir jogo, falar que o filho era mau caráter mesmo e que tinha ido para o local tal no ano tal e que não queria mais saber dele.
Fiquei conversando com o pai para ver qual procedimento adotar. Ele então me disse:
- Isso que está ocorrendo é um crime!
Surpreso, perguntei:
- Que crime?
- Um crime contra o meu filho. Depois de tanto tempo esse processo ainda existir!
Nesse momento minha suspeita se confirmou: o pai estaria protegendo o filho e, pelo visto, seria bem possível que ele estivesse no apartamento. Eu então tentei explicar que, em certos casos, o réu é condenado, mas cumpre a pena em liberdade. O pai então me disse:
- Acontece que meu filho já tem outra condenação, mais antiga ainda. Foi tudo culpa de uma sem vergonha que ele se envolveu!
O filhinho do papai era um “anjinho”, claro... Tudo culpa de uma sirigaita que levou o “ingênuo” rapaz para o “mau caminho”... O que fazer nessa situação? Colhi o nome e número do RG do pai. Certifiquei no mandado, simplesmente, que o pai do réu havia afirmado que o filho não se encontrava no local, mas que eu não tinha adentrado no apartamento para saber se isso era verdade. Devolvi o mandado em cartório. Eu é que não estava disposto a bancar o herói para prender um playboy imbecil.
Continua...

sexta-feira, 22 de maio de 2009

Parcial do Capítulo III - Bandidos, vítimas e testemunhas

...mais uma parte do Capítulo III...

Nem sempre os réus eram pessoas de classe baixa. Uma vez fui a uma casa de classe média para citar um réu. Tratava-se de uma pessoa que teria, digamos, exagerado ao dar um corretivo físico na enteada. A mãe da menina me recebeu e estava indignada, não com o padrasto que espancou sua filha, mas com a mãe do namorado da filha, que era a pessoa que tinha levado o caso à polícia. Estavam presentes a mãe indignada, o padrasto envergonhado e a menina constrangida. E eu, querendo apenas colher a assinatura do réu e ir embora o mais rápido possível.
Mas não foi fácil, a mãe na menina não me deixou sair e dizia:

- Às vezes ela (e apontou para a menina) também me bate, essas coisas acontecem, não é para parar na delegacia. Agora a mãe do namorado dela está numa boa e nós estamos ferrados! Você não acha isso um absurdo?

Fiz cara de paisagem como quem diz “quem sou eu para dizer o que está certo ou errado. Eu não acho nada, muito pelo contrário”...

Ela continuou tagarelando enquanto eu me dirigia para a porta, com o mandado já cumprido. Achei que era muito improvável que a menina pequena e magrinha que eu tinha visto pudesse espancar ou mesmo bater na mãe ou no padrasto. Mas se tem uma coisa que eu aprendi como oficial de justiça foi não duvidar de nada...

Alguns dias depois fui intimar a tal mãe do namorado, que era testemunha do caso. Também era uma casa de classe média, que deveria ter uma piscina, porque ela me recebeu de maiô, um traje de banho que algumas mulheres usavam naquela época, especialmente as gordas (embora não fosse o caso). Como sempre acontecia, a testemunha me pediu orientação a respeito do que ela deveria fazer. Na verdade, eu deveria apenas explicar o conteúdo do mandado, no caso, intimação para depoimento pessoal em audiência relativo ao processo tal, no dia tal, no Fórum Ministro Mário Guimarães, situado no Viaduto Dona Paulina, nº 80. Mas invariavelmente as pessoas queriam mais informações. Nesse caso, a mãe do namorado quis saber se o padrasto da menina estaria presente na audiência. Eu disse que provavelmente estaria, mas não tinha certeza (era verdade). Ela perguntou o que deveria fazer. Minha resposta foi, óbvio, que testemunha não precisa de advogado, mas que era poderia consultar algum advogado, inclusive caso houvesse interesse em constituir um assistente de acusação (na verdade, isso não seria possível, mas eu não sabia). Ela me respondeu “mas aí tem que pagar!...”. Eu disse que sim e, mandado cumprido, caí fora.

Citar réus e intimar vítimas e testemunhas de um mesmo caso era algo comum. Outro caso interessante envolvendo violência doméstica ocorreu em um conjunto de casas pobres situado na Consolação. Eu tinha de citar um réu e cheguei pela manhã no endereço indicado. Bati à porta e ninguém respondeu. Apareceu a vizinha que, em tom malicioso, me disse:

- Essa hora ela ainda não chegou...

Eu respondi:

- Não estou procurando ela, estou procurado ele, o senhor Fulano de tal. Será que ele se encontra?

A vizinha então me disse que ele estava preso no 4º Distrito Policial, que era perto de lá. No caso, o procedimento era me dirigir até o endereço informado para cumprir o mandado. Lá chegando, porém, fui informado que ele já tinha sido levado para um presídio. Ótimo, porque nesse caso eu não iria fazer a citação, pelos motivos que veremos no Capítulo __.

Algum tempo depois, com outro mandado, voltei ao mesmo endereço. Desta vez, o mandado era de intimação, para ela e não para ele. A mocinha estava dormindo quando eu cheguei. Ela estava de camisola, me convidou para entrar e, como sempre acontecia, me pediu explicações a respeito do processo. Ela era a vítima do caso. O réu, pessoa com a qual ela morava, teria colocado o revólver na cabeça dela e ameaçado matá-la, além, é claro, de ter lhe dado uns bons “petelecos”. A mocinha era, digamos, uma pessoa que exercia a profissão mais velha do mundo. Tentei explicar que ela era a vítima de um processo criminal e seu depoimento tinha sido pedido pelo promotor do caso. Foi uma tarefa difícil: ela simplesmente não entendia como poderia estar no processo contra a pessoa que, ao seu ver, era seu marido!

Ela me perguntou se eu teria encontrado o “marido” dela, o réu do processo. Eu disse que não, e contei que tinha sabido que ele estava preso por informação da vizinha. Ela então me respondeu:

- Essa fofoqueira. Foi por causa dela que eu briguei com meu amor.

Confesso que por essa eu não esperava: o cara senta a porrada na mulher e a culpa e da vizinha que a ajuda!

O fato é que eu tinha que terminar meu trabalho, que se resumia a colher a assinatura da vítima no mandado e entregar a papeleta com o nome dela, hora e local da audiência. O problema era explicar a ela o que era e como chegar até o fórum. Ela não entendia ou fingia não entender.

A cena, então, era esta: eu estava sentado em um colchão no chão junto com uma prostituta de classe baixa, que me olhava do jeito que as mulheres olham quando estão interessadas em um homem... Acho que é por isso que se diz “no Brasil, traficante é viciado e puta goza”! Não sei se esse ditado é verdade ou mentira, se é bom ou ruim, se é um elogio à alegria do povo brasileiro ou uma crítica à falta de profissionalismo supostamente existente nestas terras tropicais. O fato é que, mais uma vez, eu só queria colher a assinatura da rapariga e ir embora. Nessa altura do campeonato, ela tinha discretamente deixado a camisola subir um pouco, ficando com as pernas à mostra, enquanto eu fingia que nada percebia e desenhava um mapa no verso da papeleta para que ela pudesse chegar até o fórum no dia da audiência.

Algum tempo depois, por coincidência, eu estava lendo alguns processos no cartório quando me deparei com a sentença do caso. O réu tinha sido absolvido, simplesmente porque a vítima foi categórica na audiência ao dizer que nada tinha acontecido... Eu fiquei imaginando o que sente o Promotor em uma situação dessas: o cara estuda cinco anos em uma faculdade, rala à beça para passar no concurso, e como prêmio tem que denunciar um sujeito que espancou a mulher. Essa mulher na hora da audiência diz que é tudo mentira: o juiz julga improcedente a denúncia e todo o trabalho que o promotor teve com o caso vai por água abaixo. Já o cara que deu uns petelecos na mulher volta para casa e ela o recebe com, digamos, os braços abertos...
Quem é a vítima nesse caso: a mulher que foi espancada, a vizinha reputada como fofoqueira ou o promotor que trabalhou à toa? Possivelmente todos, inclusive a sociedade que paga os custos da máquina judiciária.

Continua....

terça-feira, 19 de maio de 2009

Capítulo IV - Minha mãe, as mães dos bandidos e as mães das vítimas. Família, pobreza e criminalidade.

Eu saía de manhã para trabalhar e minha mãe, invariavelmente, estava dormindo. Mas eu tinha que ir acordar ela para me despedir. Ela sempre me perguntava:

- Vai fazer coisa perigosa?
Por fazer coisa perigosa entenda-se citar ou intimar bandidos. Eu então respondia:
- Não, mãe, hoje só tem advogado e testemunha.
Passei quase dois anos enganando a minha mãe com essa história. Se fosse verdade, os processos só teriam advogados e testemunhas, nunca réus... O fato é que essa mentira conseguia deixá-la tranqüila e ela voltava a dormir.
Todas as mães dos bandidos que conheci achavam que os filhos não tinham feito nada, que era tudo culpa dos amigos etc. A história das tais “más companhias” é verdade: elas sempre achavam que o filho apenas estava junto com os amigos que tinham cometido os crimes ou que ele fora influenciado pelos maus amigos. Às vezes a culpa era da namorada. Nunca do filho.
Um caso interessante ocorreu em um bairro de classe baixa, mas que não era dos piores. Eu fui citar o réu na casa dele e, lá chegando, fui atendido pela mãe e irmãos. Eles me explicaram que o réu estava preso, em razão de outro crime. Isso era razoavelmente comum.
Ela então me disse:
- Você não vai mais nos encontrar neste endereço, porque nós vamos nos mudar para o Jardim Ângela, vamos alugar uma casa lá.
Surpreso, eu perguntei o motivo da mudança para um bairro bem mais afastado. Os irmãos me responderam que a casa estava sendo vendida para pagar o advogado. Eu já sabia que isso acontecia: em se tratando de crime, basta um dos filhos para desestruturar toda a família. As mães vendiam tudo que tinha dentro de casa (móveis, geladeira, fogão etc) para pagar o advogado que iria tentar livrar o filho da cadeia. No caso, essa família estava vendendo a casa. Talvez mantivessem a geladeira e o fogão.
A mãe do réu me perguntou se eu conhecia o advogado. Eu disse que sim e deixei escapar que o advogado era bom. Ela então me perguntou:
- Ele é um bom advogado mesmo?
Eu disse então que não sabia ou que não teria certeza. Ela então me disse:
- Eu ouvi você dizendo que ele era bom!
Sem querer, acho que fiz um bem para ela. Certamente aquela família iria dormir bem à noite, pois o Oficial de Justiça tinha dado boas referências do advogado que seria pago com o dinheiro da casa própria que estava sendo perdida. O fato é que eu realmente conhecia o advogado e sabia que ele era bom. Era um desses advogados velhinhos, muito esperto, com décadas no mesmo escritório no centro de São Paulo.
Ver mães de bandido chorando era algo comum. Os irmãos ficavam envergonhados, pediam desculpas etc. Eu realmente tinha pena das mães dos bandidos. Eu também tinha pena dos bandidos que sofriam na prisão, mas sabia que eles somente estavam lá em razão de terem cometido crimes. Só que as mães não tinham cometido crimes e possivelmente estariam sofrendo tanto ou mais que seus filhos. Talvez elas tivessem culpa por não ter criado os filhos corretamente. Hoje tenho a convicção de que em grande parte dos casos, talvez na maioria das vezes, as mães não têm culpa por terem um filho bandido: em um país com ainda gravíssimos problemas sociais, as chances das coisas não darem certo é muito grande. Para as mães que, em situação adversa, têm filhos honestos e trabalhadores, fica registrado os meus sinceros parabéns.
Para quem se interessa pelo tema da criação de filhos em uma situação adversa, recomendo o excelente filme nacional Linha de passe, dirigido por Walter Salles < http://www.paramountpictures.com.br/linhadepasse/> (mas é bom estar preparado para ver um filme forte, bem realista). Quando vi o filme, óbvio, lembrei da época em que fui Oficial de Justiça. A vida de muitas pessoas pobres em São Paulo pode ser muito parecida ou mesmo idêntica ao que o filme mostra. É claro que há inúmeras famílias pobres que são estruturadas, que os filhos vão à escola, progridem na vida etc, mas isso não dá filme ou notícia (e provavelmente não serão visitadas pelo Oficial de Justiça da vara criminal).
Sempre rejeitei a idéia de que “a violência é uma conseqüência da pobreza”, exatamente porque a maioria das pessoas pobres são honestas e trabalhadoras. E eu vi, muito, criminosos originários das classes média e alta. Culpar os pobres pela criminalidade é, realmente, uma ofensa ao povo brasileiro. Mas é indiscutível que a desigualdade social, a desestruturação familiar, o abandono, as más condições de vida, a falta de orientação são fatores que podem levar alguns indivíduos a cometerem crimes. A questão é complexa. Sob um aspecto, pode ser matemática: um percentual de indivíduos em uma determinada situação irá proceder de uma determinada maneira – o restante irá proceder de outra, óbvio. Em países como a Suécia, no qual o Estado tem um papel decisivo para efetivar políticas de bem-estar social, a criminalidade é baixa. Já em países como EUA, em que ainda vigora as teorias liberais, a criminalidade é proporcionalmente muito mais alta do que nos demais países ricos que adotam políticas sociais comprovadamente eficientes.
Em um caso não tive pena da mãe. Foi em um bairro muito pobre. Em uma casa imunda e fedorenta, perguntei se o réu estava. A mãe dele me disse que
continua...

Concurso para Oficial de Justiça e dicas

Concurso aberto para Oficial de Justiça (nível médio) e algumas informações interessantes:
http://professorconcursos.blogspot.com/


Dicas para concursos em geral:
http://www.concursos.brunosilva.adv.br/


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domingo, 17 de maio de 2009

Título do livro

Um amigo me disse que o livro deveria ter este nome:
  • Da classe E à classe A: as aventuras de um Oficial de Justiça

... exatamente para enfatizar o lado social de tudo o que vi.

Por enquanto estou preferindo o seguinte título:

  • Oficial de Justiça aos 19 anos

... para dar mais ênfase à visão de um rapaz de 19 anos, pois o livro terá um caráter "psicológico" e "subjetivo".

Mas estou aberto a sugestões, que podem ser enviadas para meu e-mail: brunosilva2008@hotmail.com

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Capítulo III - Os bandidos, as vítimas e as testemunhas

Encontrar bandidos soltos nas diligências não era fácil. A maioria dos bandidos para os quais eu levei citações e intimações estavam presos. Como teremos um Capítulo específico para falar de delegacias e presídios, vou tratar aqui dos bandidos soltos, ou melhor, dos réus soltos: temos de presumir que todos são inocentes até o trânsito em julgado da condenação!.. A partir de agora, portanto, não irei usar o vocábulo bandido, mas sim o vocábulo réu.

A maioria dos processos criminais é precedido do inquérito policial, que reúne as provas contra determinado(s) pessoa(s) e embasa a denúncia do Ministério Público. Isso significa que quando eu recebia um mandado de citação (ato do juiz que chama o réu ao processo para se defender), na maior parte dos casos, o réu já sabe que o processo existirá. Assim, quase sempre eu não encontrava o réu no seu endereço, pois ele já tinha sumido.

Mas tinha um crime específico que eu sempre encontrava o réu: era o crime de falso testemunho. Uma pessoa teria feito uma afirmação falsa em um depoimento como testemunha e o Promotor decidia ajuizar um outro processo contra ela. Nesse caso, a testemunha era o réu no processo criminal por falso testemunho. Como ela não esperava por isso, o Oficial Bruno a encontrava no seu endereço.

Nunca tive qualquer problema com os réus. Muito pelo contrário, todos me recebiam muito bem. Na maior parte das vezes, os réus que são achados pelo Oficial de Justiça são pessoas pobres que não têm, digamos, a assessoria jurídica mais adequada. Claro que há casos em que o mais adequado do ponto de vista da defesa do réu é ser achado no seu endereço. Mas na maior parte das vezes não era assim.

Pode parecer estranho que o Oficial de Justiça, portador de notícias ruins, seja bem recebido pelas pessoas. Mas a explicação é simples: vivemos em um país de pessoas pobres, normalmente com baixo nível de instrução, que necessitam desesperadamente de auxílio e orientação. O Oficial de Justiça, mesmo com dezenove anos (e cara de quinze), na percepção do réu, é passível de oferecer a orientação jurídica que o réu tanto anseia. Evidentemente, não é assim: quem deve prestar a orientação jurídica adequada é o advogado especializado na área criminal. Mas, na vida real, no desespero das pessoas que recebem uma “carta” do juiz, enviada por meio de uma pessoa bem vestida, nada mais natural que tentar obter com ela alguma orientação (nem que seja para depois confrontar com a orientação do advogado, caso consiga um).

O exemplo mais emblemático disso ocorreu em um edifício que nós chamávamos de “treme-treme”. Trata-se, na verdade, de um conjunto de edifícios situados na Rua Paim, no centro de São Paulo, bem perto da Praça 14 Bis (Av. 9 de Julho) e, em linha reta, também próximo da Av. Paulista. Tinha de tudo no “treme-treme”: bandidos, digo, réus, testemunhas, famílias imensas vivendo um cubículo, maconheiros, prostitutas, idosos abandonados, imigrantes bolivianos, adolescentes com potentes aparelhos de som etc. Eu nunca ia ao “treme-treme” para cumprir um mandado: sempre havia uns três ou quatro mandados para citar ou intimar réus ou testemunhas. Nesse ponto era bom: em um endereço, conseguia cumprir mais de um mandado.
Pois bem, eu fui ao apartamento do réu para fazer a citação e a pessoa que me recebeu disse que ele estava no bar situado na parte de baixo do edifício. Tem este detalhe: na parte térrea dos edifícios do “treme-treme” havia vários bares, que ficavam cheios durante todo o dia. Fui até o bar e perguntei pelo Fulano de Tal (não lembro o nome dele). Ele estava conversado com outras pessoas e, educadamente, eu me dirigi a ele e pedi para falar em particular. Ele me disse que eu poderia falar na frente dos outros. Um pouco incomodado, eu me identifiquei como Oficial de Justiça e comecei a explicar do que se tratava do jeito sutil que usava:

- Há uma acusação contra o senhor e o Juiz montou um processo para que o senhor possa se defender dessa acusação...

Isso não era nenhuma mentira. Eu colocava no impessoal a acusação e dizia que o ato do juiz tinha sido feito para a defesa do réu. Muito melhor do que dizer “você está sendo processado em razão de ter cometido um crime e deve comparecer no fórum se não quiser ser preso”...
Nesse momento, eu fui abordado por várias pessoas que queriam orientação jurídica. Tentei explicar o que era um mandado de citação, como funcionava um processo criminal, mas deixando muito claro que eu era apenas um Oficial de Justiça, bem como que era adequado a pessoa procurar um advogado especializado na área criminal para a devida orientação.
O réu começou a sair de fininho enquanto eu estava tentando me desvencilhar das pessoas que me abordaram. Eu percebi esse movimento e fui atrás dele.
Então ele me perguntou:
- Você trabalha no fórum e talvez possa me ajudar. Eu estou com vários processos. Você poderia dar um jeito de sumir com esses processos para mim. Nós então faríamos um acerto.
Quando ele disse a palavra “acerto”, percebi que ele já estava bem familiarizado com uma determinada prática que eu já tinha ouvido falar, mas nunca tinha presenciado.
Atualmente, existem os juizados especiais criminais, nos quais o réu indeniza a vítima para pôr fim ao processo. O acordo pode ser celebrado com o promotor e às vezes envolve doação de cesta básica para creches, instituições filantrópicas etc.
Naquela época, não existiam os juizados especiais criminais. Mas eu ouvia muito falar a respeito do acerto, que funcionava mais ou menos assim:
continua...

quarta-feira, 13 de maio de 2009

A primeira favela (continuação)

Continuação do Capítulo I...

Decidi, então, seguir para a outra rua do roteiro que eu havia traçado, para cumprir outro mandado, que era para intimar uma testemunha de acusação. Caminhei por cerca de meia hora, até chegar ao local em questão. Nessa rua existia uma pequena favela, cujo nome constava do mandado. Lá chegando, perguntei a uma pessoa se aquela era a favela Tal. Ele me respondeu que sim, mas completou de uma forma suave:

- Só que nós não chamamos de favela, chamamos de “comunidade”.

Eu disse o nome da pessoa que deveria ser intimada e perguntei se ele conhecia. Novamente ele disse que sim e apontou a casa dela. Era um barraco de madeira, situado no final de um caminho sem saída, já dentro da “comunidade”. Lá chegando, bati à porta. Ninguém atendeu. Bati palmas, e apareceu uma vizinha. Perguntei:

- Boa dia, eu gostaria de falar com a senhora Fulana, ela mora nessa casa?
- Sim, ela mora. Ela não está aí?
- Acho que não, pois ninguém apareceu.

Entreguei então uma papeleta para a vizinha, dizendo que era para a senhora Fulana ir me procurar no fórum. Ela recebeu a papeleta com uma certa desconfiança, perguntou o que era aquilo exatamente. Eu disse que era apenas um recado, com meu nome, o endereço do fórum e o horário em que a senhora Fulana poderia me encontrar. Expliquei que se tratava apenas de testemunha em um processo criminal. A vizinha, olhando a papeleta em suas mãos, perguntou-me:
- Moço, eu não vou ficar envolvida por causa disso?

Surpreso, eu disse que não. Insisti que era apenas um recado, nada mais. Dei as costas e fui embora, antes que ela mudasse de idéia.

Dirigi-me a uma avenida, onde eu iria pegar outro ônibus, para chegar em outra rua. Parei em um boteco no meio do caminho para beber uma coca-cola. Cheguei na avenida e procurei o ponto de ônibus. Não vi nenhum e segui para um dos lados, na esperança de encontrá-lo. Cruzei com uma pessoa e perguntei:

- Onde tem um ponto de ônibus nesta avenida?

A pessoa me respondeu, indicando um local onde havia duas pessoas paradas:

- É ali.

Fui para lá e fiquei esperando. Passou meia hora e o ônibus não veio. Chegou uma mulher com uma criança pequena e ficou cantando um hino evangélico ou coisa assim. Finalmente o ônibus chegou, eu entrei e fui para a frente, pois iria descer em pouco tempo. Cheguei no local que eu avaliei seria próximo da rua que deveria ir e desci. Caminhei em direção à rua, seguindo o mapa do guia.

Cheguei ao local e vi que era um bar. Com o mandado na mão, perguntei pelo senhor Fulano. O rapaz que estava no balcão me respondeu:

- É o meu irmão, mas ele não trabalha aqui, deve estar em casa. O que você quer com ele?

Respondi que eu tinha uma comunicação do fórum, sem dar detalhes. É que se tratava de uma sentença condenatória. Perguntei onde era a casa do senhor Fulano e o rapaz se prontificou a ir comigo até lá, que ficava na mesma rua.

Chegando na casa, o senhor Fulano atendeu à porta e seu irmão foi embora. Eu disse ao senhor Fulano, destacando a cópia do mandado com a sentença:

- Saiu a sentença, preciso que o senhor assine aqui.

- Que sentença?

- A sentença do seu processo.

Ele olhou a sentença, já nervoso, e disse, em um misto de surpresa e indignação:

- Mas eu sou testemunha, isso está errado!

- Eu não sei, apenas faço intimações, quem sabe é o juiz. Preciso apenas que o senhor assine aqui e coloque a data.

- Mas não pode, eu sou testemunha...

Olhei então a sentença e entendi. Tratava-se de uma condenação por falso testemunho. Tentei explicar para ele o que era e vi que ele sabia exatamente o que se passava quando respondeu:

- Vou falar com meu advogado.

Ele assinou e eu guardei o mandado na minha pasta. Subi a rua em direção à avenida para pegar outro ônibus e ir ao fórum.

sábado, 9 de maio de 2009

Capítulo II - A Vara Criminal

A vara criminal foi uma surpresa, uma decepção e me causou uma boa dose de sofrimento. Muito tempo depois eu pude perceber que o aprendizado que eu tive lá foi único e que eu não teria em nenhum outro lugar.

A primeira coisa que aprendi foi que, na política e na micro-política, pedido efetuado por escrito vale menos do que pedido efetuado verbalmente.

Explico: quando alguém é nomeado para um cargo público, deve apresentar alguns documentos no setor de recursos humanos do órgão antes de tomar posse e começar a trabalhar. No meu caso, eu disse para o funcionário desse setor que eu gostaria de trabalhar em uma vara “de falência”. O funcionário me respondeu que não seria eu quem escolheria a vara em que iria trabalhar, mas que eu poderia tentar obter um ofício de um juiz de uma vara “de falência” para obter essa designação, caso contrário seria para o local em que estivesse precisando mais de gente. Ele me disse ainda que era fácil obter tal ofício, porque é sempre vantajoso para a vara ter mais um funcionário.

Assim, antes do dia posse, eu fui ao Fórum João Mendes para conseguir o ofício. Lá chegando, vi um hall com diversos elevadores e um imenso quadro indicando qual vara está em qual andar. Não me lembro exatamente como aconteceu, mas em um dos andares encontrei uma sala pequena, como um letreiro “sala dos oficiais de justiça”. Bingo! Meus “colegas”: era ali mesmo que eu iria conseguir ajuda. Nessa sala havia três ou quatro homens. Eu expliquei que eu tinha sido aprovado no concurso de oficial de justiça e que gostaria de trabalhar em uma vara “de falência”. Eles ficaram surpresos com o fato de um garoto novo ter sido aprovado em um concurso que fora tão concorrido (330 candidatos por vaga), me parabenizaram e se dispuseram a me ajudar. E me explicaram:

- Aqui não existe vara de falência, elas correm nas várias cíveis. Nós todos somos oficiais da 4ª. Vara Cível. Mas lá o quadro já está completo.

Eles então me orientaram para procurar o escrivão-diretor de alguma outra vara cível. Foi exatamente o que fiz. Não lembro qual vara foi, mas fui muito bem atendido por uma escrivã-diretora que, com muito jeito, explicou por telefone ao juiz a situação, começando com “Dr. Fulano, desculpe incomodar, estou aqui com um rapaz que foi aprovado no concurso...”.
Juiz “tem moral”, pensei, no sentido de que tem autoridade perante os funcionários. Depois contei esse fato para meu pai, que disse que eu deveria mesmo fazer faculdade de Direito e concurso para juiz.

Obtive o ofício e levei para o setor de recursos humanos. Achei que a coisa estava resolvida e que eu era muito esperto, porque “mexi os pauzinhos” e iria trabalhar onde eu queria.

No dia da posse foi realizado um “treinamento” ministrado por uma pessoa simpática, mas que nada disse a respeito do trabalho de oficial de justiça. Nesse dia conheci o Carlos Alberto Camargo, que no ano seguinte iria ser meu colega de turma na Faculdade de Direito do Largo São Francisco. No fim do dia, descobri que eu tinha sido designado para uma vara criminal. Outras pessoas foram para varas cíveis, para varas de fazenda pública etc. Perguntei para o funcionário o que tinha acontecido e ele me respondeu que todo mundo apresentou ofício e que por isso a lotação acabou sendo de acordo com a necessidade de cada vara. Voltei arrasado para casa.
No dia seguinte, fui trabalhar no local em que fora designado, a 14ª. Vara Criminal do foro central. Na época, as varas criminais do foro central estavam no centro da cidade, no Fórum Ministro Mário Guimarães.

Chegando no cartório da 14ª. Vara Criminal, fui recebido pela escrevente-chefe responsável pela relação com os oficiais de justiça. Era uma pessoa extremamente amável, de uns trinta ou quarenta anos, não me lembro exatamente (naquela época, se uma pessoa tinha trinta, quarenta ou cinqüenta anos era a mesma coisa para mim).

Aliás, com exceção da escrivã-diretora, de uma única oficial de justiça e de um outro funcionário que estava quase sempre embriagado, todas as pessoas que trabalhavam no cartório da 14ª Vara Criminal e na sala do juiz eram pessoas maravilhosas e foram durante todo o tempo muito gentis comigo. Até hoje guardo ótimas lembranças do convívio com o pessoal de lá e, depois que deixei de ser oficial de justiça, por muitos anos mandei cartão de natal e ano novo para eles.

Poderia ter sido diferente: quase todos os escreventes da 14ª Vara Criminal tinham feito o concurso para oficial de justiça, mas foram reprovados. Quando eu cheguei, um moleque de dezenove anos com cara de quinze, meio burguesinho, para ser oficial de justiça, correu o boato que eu era sobrinho de um desembargador e que não tinha passado no concurso coisa nenhuma, mas simplesmente sido nomeado. De nada adiantava meu nome estar na lista dos aprovados, o concurso teria sido fraudado e ponto final.

Naquela época já não havia mais a “central de mandados”, ou seja, cada vara tinha seus oficiais de justiça. Com a minha nomeação, o quadro da 14ª. Vara Criminal ficou completo, com dez oficiais de justiça. A cidade de São Paulo foi dividida em onze regiões, conforme as páginas do guia de ruas que utilizávamos. Os mandados do centro seriam distribuídos igualmente para todos oficiais, que teriam, cada um, uma das outras dez regiões da divisão efetuada.

Eu fiquei com uma parte da zona sul: era um “retângulo” que, na largura, abrangia três páginas do guia e, no comprimento, umas oito. Abrangia a parte sul da linha norte sul do metrô, a região da Paulista, o Bexiga, o Itaim, Pinheiros, o aeroporto de Congonhas, a divisa com Diadema etc. Era uma região pequena, mas com um grande volume de serviço. Embora a boa parte dessa região fosse habitada por pessoas de classes média e alta (inclusive milionários), era uma região com muitos cortiços e favelas. A opinião generalizada de que em São Paulo a pobreza e a miséria estão apenas nas regiões mais afastadas é falsa, como será visto ao longo deste livro. Também é falsa a idéia de que as pessoas que cometem crimes são normalmente pessoas das classes baixas, o que também abordarei neste livro. Certamente a diversidade da minha região contribuiu para me dar uma boa visão, embora apenas empírica, do problema da criminalidade em São Paulo. Além disso, quando algum oficial da zona sul (que abrangia pela nossa divisão também zona oeste) entrava de férias, os mandados da área de oficial em férias eram distribuídos entre os demais oficiais da zona. Portanto, eu conheci todos os bairros e todas as favelas da zona sul e da zona oeste de São Paulo, incluindo o Morumbi, o Capão Redondo, o Jardim Ângela e outros lugares famosos ou não tão famosos, pelo bem e pelo mal.

Fui apresentado ao juiz titular da vara, um sujeito de uns quarenta anos (ou cinqüenta, sei lá). Ele me parecia uma pessoa séria, trabalhadora e rígida, como evidenciava seu sobrenome: Marcial. Por razões que eu nunca soube, ele era chamado de Dr. Maciel, embora todos os escreventes escrevessem o nome dele corretamente. O “Doutor Maciel” tocava a vara muito bem e os processos andavam, o que significava, é claro, muito trabalho para os oficiais de justiça. Ele saiu de lá um pouco antes de mim e nunca mais ouvi falar nele.

Nesse dia fui apresentado a um outro oficial de justiça meio gordo, muito gente boa, de uns cinqüenta ou sessenta anos, que tinha parte dos dentes da boca e cheirava fortemente a cigarro. Ele me levou para fazer uma intimação a um advogado no centro da cidade para eu começar a aprender o jeito da coisa (naquela época, no processo criminal, os advogados eram intimados pessoalmente, pelo oficial de justiça).

Ele era o que poderia ser chamado de “puta velha”, em razão da experiência. Meu deu as seguintes dicas a respeito de como eu deveria proceder:

· Não ser nem arrogante nem humilde demais;
· Sempre chamar o bandido de Senhor: isso o surpreende e faz com que ele lhe respeite;
· Pode deixar o mandado, mas nunca com a cópia, para o advogado assinar, caso não se encontre o advogado na hora (com exceção de determinados advogados, que o procedimento era outro, como veremos no Capítulo __);
· Na intimação, deixar o advogado colocar a data do dia seguinte, para ele ter um dia a mais de prazo;
· Nunca aceitar dinheiro ou favor de advogado, réu, testemunha, ou de quem quer que seja;
· Não confiar na polícia e não esticar papo em delegacia.

Com exceção dessa última parte (conversar na delegacia), segui a risca essas orientações.

Continua...