sexta-feira, 21 de agosto de 2009

O dia em que eu evitei fosse plantada uma nulidade em um processo criminal (Capítulo 10)

Nós tínhamos prazo de trinta dias para cumprir os mandados em que não havia uma audiência especificada. Se não cumpríssemos nesse prazo, teríamos de pedir por escrito mais prazo para o juiz, explicando o motivo do atraso. Invariavelmente o motivo era excesso de serviço. Evidentemente, sempre o juiz dava mais prazo, porque ele não teria outra opção: ou dava mais prazo ou abria processo administrativo contra o oficial de justiça... Mas eu não gostava de pedir prazo, preferia deixar meu trabalho sempre em dia e não ter aborrecimentos.

Um dia estava com um mandado para intimar um réu de uma sentença condenatória com o prazo quase estourando. Eu já tinha ido ao endereço, mas ele não estava lá. Eu não me lembro, mas com certeza deveria ter deixado recado para ele ir me procurar no fórum, pois era o procedimento que eu adotava, para não ter de voltar várias vezes a um mesmo endereço.

Só que quem me procurou foi o advogado desse réu. Ele me disse que eu poderia ir ao seu escritório intimar o réu. Esse procedimento era totalmente inusitado, mas como o escritório era no centro, para mim seria ótimo, pois eu cumpriria facilmente o mandado que estava com o prazo vencendo. Aí topei a proposta e fui ao escritório do advogado no dia e hora combinados. Lá chegando, ele abriu o jogo:

- Esse processo correu em revelia. Você já sabe que o endereço que está no mandado existe. Preciso que você certifique que intimou meu cliente nesse endereço, pois irei usar sua certidão para fundamentar um pedido de nulidade do processo.

Explico o estratagema que ele bolou: se o réu foi encontrado no endereço do mandado, é porque morava lá. Assim, se ele não fora citado para se defender, no início do processo, naquele endereço e só agora teria recebido a sentença condenatória, o processo era nulo. Por isso era tão importante para o advogado que eu certificasse que o réu fora encontrado no endereço indicado no mandado, para que ele pudesse afirmar de forma mais bem fundamentada, em termos probatórios, que o réu morava no endereço em que deveria ter sido inicialmente citado.

Realmente, eu poderia fazer isso, pois o endereço realmente existia e eu não ficaria nem um pouco vulnerável juridicamente se certificasse que intimei o réu no endereço que estava no mandado. Quem seria prejudicado seria a “Justiça Pública”. O promotor, que não era meu amigo, também seria prejudicado, pois sua estatística ficaria levemente piorada, com uma condenação a menos e um processo declarado nulo a mais.

Eu então balancei a cabeça de forma afirmativa. Acontece que, na linguagem corporal, esse gesto pode significar “entendi o que você está me dizendo” ou “farei o que você está me pedindo”. No final das contas, eu não afirmei, nem neguei, que iria fazer o que o advogado me pediu.
Ele então pegou uma nota nova, que havia sido recentemente lançada, dobradinha. Não me lembro o valor da época, mas era a nota de valor mais alto que existia. Naquela época a inflação era alta, e o governo estava sempre a lançar notas novas, de valor mais elevado, que depois de algum tempo perderiam o valor e seriam retiradas de circulação. O advogado fez o gesto de me entregar a nota enquanto me dizia:

- Preciso pagar a usa diligência.

Nitidamente era uma tentativa de suborno: ele me daria o dinheiro em troca da elaboração da certidão que ele queria, tudo para anular o processo que culminou com uma condenação criminal.
Eu então respondi apresentando um ar ingênuo:

- Não, doutor, aqui no crime não é como no cível, o advogado não paga as diligências, nós recebemos pelo Estado.

Ele ficou meio desconcertado com minha atitude, pois não esperava que eu recusasse o dinheiro. Aproveitei a perplexidade dele e pedi para fazer a intimação do réu.

Obviamente, ele não teve outra saída que não me levar ao seu cliente, que estava na outra sala. Lá chegando, fiz a intimação e ainda pedi que o réu mostrasse seu RG, para que eu tivesse certeza que era ele mesmo.

Intimação realizada, o advogado não fez de rogado e disse:

- Não esqueça que eu preciso que você certifique que intimou o réu no endereço do mandado.

Eu simplesmente respondi:

- Entendi, doutor.

Propositalmente, em nenhum momento eu disse que iria fazer o que ele queria. Eu não recebi o dinheiro que ele me ofereceu apenas por uma questão de “extrema honestidade”. Embora eu tivesse apenas 19 ou 20 anos de idade, eu já sabia que receber dinheiro de alguém envolvia uma contrapartida: fazer o que a pessoa queria. Ou seja, receber dinheiro quase sempre significa ficar politicamente em desvantagem. Eu não tinha decidido naquele momento se iria fazer a certidão do jeito que o advogado pedira. Como eu nunca aceitava o dinheiro de advogado, não ficava vinculado a nenhuma promessa tácita ou explícita.

Evidentemente, eu não queria me indispor com qualquer advogado, mas a idéia de ajudar a plantar uma nulidade em um processo criminal não me agradava nem um pouco. Naquela época eu não tinha a exata noção do poder político das pessoas e tinha um certo receio de vir a ser injustamente prejudicado por alguém poderoso.

Pensei por um dia ou dois como fazer a certidão. Então simplesmente narrei a verdade, com uma sutil omissão: certifiquei que no dia tal fui ao endereço constante do mandado, mas que não encontrei o réu; certifiquei que em outro dia tal intimei o réu do inteiro teor da sentença, mas sem dizer o local da intimação. Desse modo, a certidão ficou dúbia.

O advogado não me procurou para reclamar a respeito da certidão que não constou o que ele queria. Mas como eu não recebi o dinheiro que ele me ofereceu, nem disse que faria a certidão do jeito que ele me pediu, não estava vinculado a nada e poderia simplesmente dizer que o ajudei de forma suficiente ao não mencionar na certidão que intimei o réu no seu escritório, razão pela qual ele deveria é estar muito agradecido e não vir me importunar.

Realmente, ele poderia até tentar usar a minha certidão desse jeito mesmo, alegando que eu teria afirmado que o réu fora intimado no endereço constante do mandado, mas seria necessário fazer uma dupla ilação: como o oficial de justiça efetuou a intimação, teria implicitamente afirmado que, na segunda diligência, o réu fora encontrado no endereço constante do mandado (embora explicitamente afirmado o oposto no tocante à primeira diligência) e, portanto, mora nesse endereço, razão pela qual o processo não poderia ter corrido à revelia porque o réu deveria ter sido inicialmente citado naquele endereço. Mas para anular um processo criminal, essa prova estava muito frágil...

Além disso, se o juiz quisesse, poderia pedir que eu complementasse a certidão, para explicitar o local em que a intimação fora realizada, já que eu afirmara que réu não fora encontrado no endereço do mandado, mas não afirmara qual o local da intimação. Como isso não foi pedido, é óbvio que o advogado concluiu que minha certidão seria imprestável para fundamentar o pedido de nulidade do processo e ainda imaginou que, se o juiz me pedisse para complementar a certidão, eu poderia dizer que a intimação fora feita no escritório do advogado, o que detonaria completamente a possibilidade de anulação do processo. É possível que o promotor e o juiz viessem a ser engabelados pelo advogado malandro que, mesmo com uma certidão capenga, conseguiu seu propósito. Mas aí o problema seria outro: o promotor e o juiz, que são agentes públicos graduados e bem pagos, devem rechaçar eventual tentativa de alegação de nulidade no processo, especialmente se essa tentativa está muito mal fundamentada.

No final das contas, não participei da malandragem, mas também não me indispus com o advogado. Se eu fosse provocado formalmente pelo promotor ou pelo juiz, poderia dizer que intimei o réu no endereço do advogado, o que seria a mais pura verdade.

Mas nada disso foi necessário. Algum tempo depois eu procurei saber o que teria acontecido. O advogado realmente tentou anular o processo, mas nada disse a respeito da minha certidão, optando por usar outros meios de provas para demonstrar que o processo seria nulo porque o réu deveria ter sido citado no endereço em que supostamente morava. Mas sem a minha certidão, essa tentativa não vingou, por falta de maiores elementos probatórios.

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Capítulo XII - As delegacias de polícia. O problema da segurança pública em São Paulo

Cumprir mandados em delegacias era fácil quando a pessoa a ser intimada era um preso (obviamente ele ficava o dia inteiro lá e não saía para beber cerveja, ir à casa de um amigo, jogar futebol etc). Se o preso tivesse sido transferido para um presídio, eu simplesmente devolveria o mandado com essa observação, para que ele fosse cumprido no “rodízio” mencionado no Capítulo __. Se o preso tivesse sido transferido para outra delegacia, aí eu teria de ir para essa outra delegacia cumprir o mandado, mas isso era incomum.

Quando a intimação era para um policial civil, a coisa era mais complicada. Normalmente eles estavam cumprindo diligências fora da delegacia, ou eu chegava fora do horário de trabalho da equipe, era raro encontrar a pessoa lá.

Normalmente a intimação era para algum preso. O procedimento era me dirigir ao delegado que estivesse de plantão e pedir para falar com o carcereiro.

Em linhas muito gerais, o padrão físico da maioria das delegacias de São Paulo era assim: uma sala em que ficava o delegado de plantão, o cartório da delegacia e a sala do carcereiro próxima do pátio com as celas. Algumas delegacias tinham uma pequena cela fora do pátio (chamada de “chiqueirinho”), no qual ficava um único preso aguardando ser removido para alguma audiência ou ser transferido para outro lugar. O pátio da delegacia era pequeno, com três ou quatro celas em dois lados. O pátio ficava trancado, normalmente com um preso de confiança lá, fazendo algumas tarefas, como de limpeza.

Um desvirtuamento gravíssimo que ocorria naquela época era a superlotação das celas situadas em delegacias. Isto mesmo: centenas ou milhares de presos simplesmente cumpriam penas de prisão nas delegacias e não em presídios!

Para os presos, ficar nessas condições era um verdadeiro inferno. Mas tinha uma vantagem: a possibilidade de fuga de uma delegacia era muito maior do que em um presídio, mesmo nos de segurança mínima.

Em uma ocasião, um carcereiro me contou que os presos de uma das celas estavam cavando um túnel para escapar. Eu perguntei como eles faziam isso e ele me respondeu:

- Com uma colher comum.

Incrédulo, perguntei qual seria o destino do grande volume de terra que saía do buraco que estava sendo cavado, bem como porque eles (os policiais) não acabavam logo com essa tentativa de fuga. O carcereiro me explicou:

- Eles dão um jeito de tirar a terra de lá, normalmente por meio das visitas. Nós esperamos eles cavarem um pouco mais, pois enquanto eles estão ocupados, não dão trabalho. Mas daqui a uns dias nós vamos acabar com mais esse túnel. Nós estamos acompanhando, mas eles não sabem.

Eu fiquei imaginando a frustração que os presos deveriam sentir ao ver o túnel quase pronto ser descoberto...

Nas delegacias que não estavam situadas na periferia sempre existia um delegado de plantão. Teoricamente, toda delegacia deveria ter, durante as vinte e quatro horas diárias, uma equipe de plantão, formada por um delegado, um ...clique aqui para continuar...

sábado, 1 de agosto de 2009

Políticos, empresários e prostitutas (continuação)

... Continuação do Capítulo 14 - Políticos, empresários e prostitutas

O advogado fez questão de me dizer que o réu não era um Deputado, mas sim um ex-Deputado, e me perguntou se eu gostaria de passar no escritório dele para tomar um café. Como eu imaginei que ele iria me oferecer dinheiro pelo cumprimento rápido do mandado, respondi que estava com muito serviço (o que era verdade), mas que em uma outra ocasião iria passar lá para conhecê-lo. Evidentemente, foi um jeito educado de dizer que eu não estava interessado em propina.

Em um outro mandado decorrente de “Pedido de Explicações”, o querelado era uma pessoa que trabalhava na mesma empresa que meu pai. Era uma história de alguém que, supostamente, teria “levado bola”. Na gíria da época, “levar bola” significava receber dinheiro para fazer algo ilícito e no “Pedido de Explicação” constava exatamente essa expressão, bem como o nome da empresa que meu pai trabalhava. Como eu nunca tinha ouvido falar nos nomes do querelante e do querelado, fui perguntar ao meu pai se ele conhecia os caras. Ele me respondeu que sim e ficou muito surpreso com a história. Ele me disse assim:

- Puxa, o Fulano “levando bola”...

Na verdade, casos de corrupção em empresas privadas são muito mais comuns do que as pessoas pensam. Há quem diga que, em uma certa ocasião, um estagiário clique aqui para continuar...